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"Poucos querem guerra e muitos, inocentemente, morrem": nutricionista potiguar viveu tensão da guerra em Israel

18 OUT 2023

Foto: Lilian e Rogério com os militares da FAB na chegada ao Brasil - Fotos: Acervo pessoal

Por Fernando Azevêdo, exclusivo para o BZN:


- A nutricionista norte-rio-grandense Lilian Lins, 45, chegou a Israel no dia em que o primeiro ataque do grupo extremista palestino Hamas ocorreu, 7 de outubro. Na ocasião, ela integrava uma comitiva de 25 potiguares que pretendia realizar uma peregrinação cristã no país, conhecido como “Terra Santa”. Acompanhada do esposo, o empresário Rogério Barreto Drummond, 45, Lilian testemunhou por cinco dias a tensão do conflito, que se estende até hoje e já atingiu a marca de 4.200 mortos.

 

Tal comitiva era liderada pelos padres Francisco Fernandes e Luís Paulo, em viagem realizada pela empresa Arituba. Lilian Lins chegou ao Brasil no dia 12, no segundo voo da Operação Voltando em Paz, da Força Aérea Brasileira (FAB). Ela conta que, inicialmente, pensava muito nos dias que viveu em Israel. Após dois anos de preparação, finalmente Lilian embarcara rumo à “Terra Santa”, onde, pela tradição cristã, Jesus Cristo viveu, morreu e ressuscitou.

 

Mas, no primeiro dia, o sonho foi interrompido por uma guerra que logo repercutiu no mundo inteiro. Os ataques contra Israel começaram dia 7 e foram aos poucos percebidos pela comitiva da qual Lilian fazia parte. “No lugar da paz, encontrei a guerra, no lugar do amor, o ódio e, no lugar da paixão, o desejo de matar”, relata em um texto que escreveu para processar esses momentos.

 

Chegando ao Rio Grande do Norte, a nutricionista sentiu a necessidade de participar de um retiro de silêncio, em que visou reconectar-se ao mundo e à natureza. “Acho que logo que eu cheguei, realmente… Você começa a falar, chora, mas agora eu já estou bem melhor”, diz.

 

Em seu relato, fé, esperança e medo se misturam. Conforme o planejado, a peregrinação duraria nove dias, com mais quatro dias de passeios (em Tel Aviv e em Lisboa). Lilian diz que queria viver uma experiência: “Para minha mente, o melhor era eu esquecer tudo que aconteceu, mas, para o meu espírito, a pior possibilidade que existe seria esquecer [...] Quando você vai para a Terra Santa, você quer viver uma experiência com Deus, com Jesus. E essa foi a experiência que Ele me deu”, diz. “A minha experiência era essa, então eu não posso esquecer e não posso chegar na vida real e relativizar tudo que aconteceu”, acrescenta.

 

 

Lilian conta que sempre frequentou as missas na igreja, mas foi depois dos 37 anos que ficou mais ativa nas atividades religiosas. Ela se declara como “apaixonada por Jesus” e descreve essa paixão como um sentimento bom e contagiante, “que despertou em mim, aos 45 anos, o grande desejo de visitar a Terra de Jesus, a Terra Santa em Israel”.

 

Esperança

A fé e a esperança de voltar para casa em meio à guerra se fizeram presentes no relato da nutricionista, que diz ter sido confrontada com questionamentos como “Por que isso está acontecendo?”. Por outro lado, ela manteve sua fé e pensou que “nada na vida é por acaso”.

 

A esperança nascia e morria dia-a-dia, com as notícias e os impedimentos, como quando tentava comprar passagens aéreas (para qualquer país fora da faixa de guerra) e os voos eram cancelados. Foi com a convocação para o voo da FAB e com o sentimento de volta para casa que houve algum alívio.


Medo

 

O medo é confirmado em diversos momentos ao longo do relato de Lilian. Como quando o grupo percebeu a gravidade da situação, que estava sendo levada com cautela pelos israelenses. Também quando tiveram que se abrigar em bunkers para proteção contra os mísseis e as bombas. Ainda, na sensação de falta de liberdade, de achar que iria ficar presa no país em guerra.

 

“Os dias foram se passando e, no total, foram cinco longos dias em Tel Aviv com muita bomba, mísseis, estrondos, sirenes, bunker e muita muita notícia ruim, morte, massacre e desgraça”, escreveu.

 

No dia do retorno, o episódio de maior tensão ocorreu, conta Lilian. Jogaram uma bomba no aeroporto e as pessoas que estavam ali precisaram novamente se proteger em um bunker. “Foi terrível. Foi o pior bunker de todos. São coisas que jamais vou esquecer: a falta de liberdade de sair de um lugar e sentir, de fato, que eu estou presa aqui e não sei o dia de amanhã. Eu não sei o que pode acontecer amanhã, e isso é muito desesperador. Quando a gente olha para essa finitude da vida, muitas coisas passam pela cabeça. Eu acho que é a hora que de fato a gente se transforma”, lembra

 

Pensamentos

 

Apesar de desgastante, a experiência mostrou a Lilian algumas atitudes necessárias, conforme escreveu em seu relato pessoal. Algumas delas são: “ser mais solidária; querer que o outro ‘se salve’ tanto quanto eu; fornecer ajuda humanitária; não perder a fé e a esperança; e enxergar que no ambiente de guerra existem as pessoas que não são de guerra”.

 

“Conheci, inclusive, várias delas. Elas estão do lado oposto a guerra, extremamente ungidas, cheias do Espírito Santo, sorridentes, treinadas e alistadas no exército de Deus, onde o principal exercício diário é o amor. Essas pessoas são recrutadas e formadas por Deus para estarem ali, no caos total, semeando o amor no meio a tanto ódio espalhado na guerra”, adiciona.

 

Diz ainda: “Que eu possa, pelo resto da minha vida, exercitar minha solidariedade fraterna, especialmente com as minhas orações diárias pela paz no mundo e pela injustiça cometida a tantos inocentes e crianças que vivem no meio de conflitos e de guerras”.

 

Voos da FAB

 

A comitiva tinha 24 potiguares. Desses, 13 retornaram no segundo voo da Força Aérea Brasileira (FAB) no dia 12 de outubro, incluindo Lilian e o esposo. Os outros 12 cristãos conseguiram viajar para a Espanha.

 

No segundo voo da FAB, 214 brasileiros foram repatriados, quando a aeronave KC-30 decolou em Tel Aviv com destino ao Rio de Janeiro (RJ). Até esta segunda-feira (16), 916 brasileiros e 24 animais de estimação já haviam retornado ao Brasil. As viagens ocorrem por meio da Operação Voltando em Paz, do Governo Federal.

 

A guerra

 

Os ataques do grupo extremista palestino Hamas contra Israel foram respondidos, e foi iniciado o conflito em que a ONG Human Rights Watch identificou diversos crimes de guerra, como ataques contra civis, ofensivas indiscriminadas com mísseis e tomada de civis como reféns.

 

A motivação da guerra, como apontam especialistas, é a disputa histórica por territórios entre Israel e Palestina. Neste ano, o grupo Hamas iniciou os ataques, que foram rebatidos e já somam, além dos 4.200 mortos, mais de 1 milhão de pessoas deslocadas como resultado da guerra, conforme aponta a Organização das Nações Unidas (ONU).

 

Brasileiros estão entre as vítimas

 

Segundo informações do Itamaraty, ao menos três brasileiros foram vítimas dos ataques do Hamas no dia 7. São eles: Bruna Valeanu, carioca de 22 anos; Ranani Nidejelski Glazer, gaúcho de 23 anos; e Karla Stelzer Mendes, carioca de 42 anos. Os três estavam no festival de música eletrônica Universo Paralello.


Confira: trechos do relato de Lilian Lins

 

Foram dois anos de grupo de estudo da Bíblia, me preparando para viver este momento. E domingo, no Fantástico, eu vi uma reportagem sobre a guerra que dizia assim: 2 anos que o Hamas ensaia esse ataque. Eu estudava querendo ir pra lá. E eles, há 2 anos, estudavam para fazer essa guerra. Então, assim, paralelamente, foi o mesmo tempo, e eu cheguei lá exatamente no dia em que a guerra começou.

 

Nada na vida é por acaso, foi o que de fato Jesus tinha pra mim na terra dele. Ele me fez sair de lá bem, com vida, mas com certeza ele quer que algo seja transformado na minha vida e no meu coração. E eu não posso jamais esquecer tudo isso que a gente viveu.

 

Foram você e o seu esposo, não é isso?

 

Eu e ele [...] Em situações desse tipo, Rogério fica mudo. E eu já sou totalmente espoletada. Então, assim, do dia que a gente chegou lá para o dia de vir embora, não teve nenhum dia que eu dormi mais de três horas. Eu saí daqui dia 5 e cheguei lá na madrugada de 6 para 7. Acordei lá no dia 7 de outubro.

 

Você acordou com o barulho de sirenes?

 

A gente acordou, chegamos no café da manhã que marcamos às 8h, porque às 9h ia ter a missa de abertura da peregrinação. Porque a gente foi pra Terra Santa para fazer uma peregrinação. Seriam nove dias peregrinando. Dois em Tel Aviv passeando e dois em Lisboa.

 

Fizemos essa missa de abertura para que [a peregrinação] fosse abençoada. No café da manhã, duas pessoas apenas disseram: vocês não viram os estrondos, não? Faz 1h, mais ou menos.

 

Não ouvi. Num grupo de 25 pessoas, somente duas pessoas tinham ouvido. [...] No hotel, disseram “Ah, isso é normal aqui. Mas não vai ser nada não”. Isso lá em Israel, 8h da manhã. Acabamos o café da manhã [...].

 

A gente só foi se tocar depois, mas todas as TVs do hotel ficaram bloqueadas, só passava esporte. Um homem no piano tocando, funcionários sorridentes, celebramos a nossa missa no próprio hotel de frente pro mar. Uma praia linda lá em Tel Aviv. Na orla de Tel Aviv, de frente pro Mediterrâneo. O mar de uma cor, assim, lindíssima.

 

Depois disso, subimos, porque de meio-dia o nosso guia ia chegar pra gente fazer o city tour em Tel Aviv. Quando ele chegou meio-dia (eram seis horas da manhã no Brasil), a gente já tinha tirado foto, já tinha postado na rede social e estava se divertindo no saguão do hotel.

 

Quando o guia chegou, ele disse "Olha, é o seguinte: teve um ataque do Hamas [Ele mostrou um mapa de Israel para explicar que o ataque era longe do hotel]. E isso não atrapalhar em nada a nossa peregrinação. A gente vai pro lado oposto ou da guerra”.

 

[Nesse momento, sabiam que houve um ataque em uma festa. Horas depois, o governo declarou que haveria guerra.] Que Israel ia de fato entrar em guerra. Pelo contra-ataque ao que tinha acontecido. O guia anunciou: “A cada duas, três horas, a TV vai nos atualizar com o que está de fato acontecendo. Vamos cancelar por ora o nosso passeio, vamos fazer hora aqui no hotel, eu vou ficar por aqui e daqui a duas horas eu chamo vocês pra gente se atualizar novamente”.

 

A gente voltou pro saguão. O guia continuou: “Aqui isso acontece. Esse país é um país seguro, mas é um país que sofre conflitos”.

 

[...] Até então, zero barulhos de bomba. Já eram 2h da tarde. Aqui no Brasil já era de manhã, e vários familiares já tinham mandado o que estava acontecendo. O que o guia nos dizia? Isso está acontecendo a 80 km de onde a gente está.

 

A gente tentava acalmar os nossos familiares com notícias [...] Quando deu 6h da noite, no horário de lá (aqui era meio-dia), aí, meu amigo, foi enxurrada de míssil.

 

Esses mísseis e bombas, [estima-se que] eles são 97% interceptados, então a gente ouve o barulho, a gente ouve o estrondo, a gente vê alguns mísseis, vê algumas explosões no ar, mas elas continuam longe. Dependendo do que eles causam, as sirenes em Tel Aviv são disparadas e você tem 90 segundos para ir para um lugar mais seguro, chamado bunker. Lá, você aguarda até a liberação com segurança.

 

Durante o período em que eu estive lá, isso aconteceu seis vezes. Muitas vezes, a gente escutava a bomba, escutava o estrondo, mas a sirene não tocava. Como a gente aqui, no Brasil, não está acostumado com isso, foram momentos desesperadores. Você pensa: se eu estou indo para um lugar como esse, mesmo que eles digam que é 97% de chance de não acontecer uma explosão, mas se a gente está ali, podemos estar nos 3%, não é verdade? Senão, eles não nos mandavam pro bunker.

 

[Ficamos] rezando, nos abraçando, de mãos dadas, há gritos, tem gente que se deita no chão, tem gente que passa mal, teve criança vomitando. Foi realmente muito ruim.

 

Isso, dia após dia, ia acabando com os nossos nervos. Daí, as noites de sono mal dormidas, o cansaço, a malha aérea a cada dia diminuindo. Você vendo que você estava preso ali – porque eu cheguei a comprar, junto com o Rogério, oito passagens.

 

Perto do horário do voo, a gente recebia a mensagem do cancelamento. E isso era desesperador. Porque você entrava em contato com a companhia, eles diziam “O voo está cancelado por tempo indeterminado, a companhia aérea parou de fazer malha aérea para Israel” [...] As chances de você ir embora iam diminuindo drasticamente.

 

Qual era o medo dessa guerra?

Aumentar, e outros países entrarem. Inclusive, esse medo, mesmo estando aqui no Brasil, ele ainda existe. Isso pode ainda virar uma grande guerra, muito maior, e uma guerra é isso, né? Poucos querem guerra e muitos, inocentemente, morrem. E esse clima negativo, esse clima de desespero, de tristeza, de desgraça, vai nos abalando, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto.

 

[...] Depois do primeiro dia, dia após dia a coisa só fez piorar violentamente, então a guerra não acabou, né? Infelizmente a gente está vendo os terrores que estão acontecendo [...].

 

Qual foi o momento mais tenso?

 

Foi quando a gente chegou no aeroporto, já convocados pela Embaixada do Brasil [para entrar no voo da FAB], e aí tiveram bombas no aeroporto, e a gente teve que correr pro banker do aeroporto. Ali foi o momento mais tenso, e que eu pensei “Eu não acredito, Senhor, que eu cheguei prestes a conseguir escapar, e não vai mais dar certo”. Foi muito tenso esse momento. Até de fato o avião decolar – a gente passou uma hora para decolar, porque ele só iria decolar na máxima segurança.

 

Até esse momento foi bem difícil, era um… Ave Maria, um frio na barriga, um tremor no coração, porque é como se eu estivesse muito perto de ver o milagre acontecer, mas não era não era algo fácil.

 

E como foi receber a notícia do retorno?

 

Chegou pela Embaixada. Como a gente estava viajando com uma empresa muito experiente [a Arituba], no sábado à noite ela informou que a coisa ia piorar e que a Embaixada tinha liberado um link para dar apoio aos brasileiros que estavam lá em Israel. A gente foi orientado a preencher esse link imediatamente. No próprio sábado à noite todos preenchemos o link de cadastramento da embaixada.

 

Mas a gente não sabia se a gente ia caber nesse voo, se a gente ia ser chamado, se não ia ser chamado. [...] alguns do grupo começaram a receber mensagens. Primeiro, três receberam. Depois mais dois receberam. [...] Os demais receberam. Os 13 no total. Aí foi uma alegria sem tamanhos, sem tamanho, sem tamanho. A gente saber que a gente iria voltar para casa e que íamos todos juntos.

 

Ela [a embaixada] prioriza os grupos todos juntos. Não sei como é que é feito esse critério, essa seleção, mas eu acredito que a gente foi um dos primeiros a se inscrever, porque no sábado à noite a gente já estava com esse formulário da embaixada preenchido.

 

Lilian, nesse processo houve algum tipo de barreira linguística?

 

Não tinha nada em português. Era tudo na língua deles, né? Árabe, hebraico também, que eles falam. E inglês. Meu marido fala muito bem inglês, e a gente se virava em inglês. Aí não tinha nada em português não. Muitas coisas a gente baixou o Google Tradutor, e a gente colocava em hebraico para fazer a tradução para português.



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Autor(a): BZN



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